Carta Aberta a um Brasil que Esqueceu de Olhar para Trás
- Sandra Mara Selleste
- 10 de out.
- 5 min de leitura

Para você, que luta e acorda cedo, que tem o justo orgulho do seu caminho e que, por vezes, olha com desconfiança para os projetos de amparo a quem ficou para trás: esta carta é um convite para uma pausa, uma reflexão.
Como estrategista de negócios criativos, percebo que muitos debates que paralisam nosso país nascem de uma incompreensão sobre como o valor é criado e distribuído. Por isso, me sinto chamada a esta reflexão.
Nela, não há a intenção de apontar dedos, mas sim de abrir uma janela para o passado, para que possamos, juntos, entender as raízes de um sentimento que hoje nos divide. Você já se perguntou por que a mão estendida a um compatriota necessitado lhe causa incômodo? Por que a distribuição de uma cesta básica ou o programa que garante um teto a uma família parecem um desperdício do dinheiro dos seus impostos, suado e honestamente pago?
Uma Memória de Acolhimento
Permita-me, com o devido respeito, evocar a memória dos seus, dos nossos antepassados. Muitos de nós, brasileiros, carregamos em nossas árvores genealógicas as histórias de corajosos europeus que, entre o final do século XIX e o início do século XX, atravessaram o oceano em busca de uma promessa. Fugiam da fome, da miséria e da falta de perspectivas em suas terras natais. E o que encontraram aqui?
Encontraram um Brasil que os queria, que os via como a força motriz para um novo tempo. O governo brasileiro da época não apenas abriu as portas, mas também estendeu um tapete de incentivos. Financiou suas viagens, acolheu-os em hospedarias e, o mais crucial, subsidiou o acesso à terra. Em um país onde a terra era, e ainda é, sinônimo de poder e riqueza, seus avós e bisavós, em muitos casos, receberam do Estado o solo fértil para fincar raízes, construir famílias e prosperar.
Não há demérito algum nisso. Pelo contrário, foi uma política de desenvolvimento que moldou a nação. Mas é um fato histórico que precisa ser lembrado. Aqueles que vieram "para trabalhar" não o fizeram sozinhos. Tiveram o amparo de um projeto de nação que, por seus próprios interesses e visões de mundo da época, escolheu a quem ajudar.
E é aqui que o presente nos convoca a uma reflexão profunda. Por que, para alguns de nós, descendentes diretos dessa generosidade estatal, é tão difícil ver com bons olhos programas como o "Minha Casa, Minha Vida"? Por que não vibramos com a conquista da casa própria por uma família de baixa renda, sabendo o que a segurança de um lar representa para a saúde mental, para a dignidade e para a construção de um futuro? Será que o subsídio de ontem era mais justo que o de hoje?
A Contradição da Abundância
Vivemos em um país que é uma potência agrícola, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. Nossos campos produzem em abundância, o clima nos favorece e a tecnologia impulsiona safras recordes. E, no entanto, a fome ainda é uma realidade que assombra milhões de lares. Por que a compaixão por quem tem fome é, por vezes, vista com desdém? Por que o ato de oferecer uma marmita a um morador de rua gera mais críticas do que a indiferença?
A mesma lógica se aplica à educação. Quando se fala em destinar mais verbas para a educação pública, para a pesquisa, para a formação de nossos jovens, surgem vozes que questionam o "gasto". Mas como podemos chamar de "gasto" o investimento mais eficiente e transformador que uma nação pode fazer? A educação é a semente da inovação, da tecnologia de ponta, de serviços básicos de qualidade para todos. É o caminho para um futuro onde o Brasil não seja apenas um exportador de commodities, mas também de inteligência e soluções.
Cultura: O Investimento que se Paga
E esse mesmo ruído crítico, essa mesma incompreensão, recai sobre a cultura, tantas vezes rotulada como um luxo supérfluo para poucos. Ignora-se que a Economia Criativa já representa cerca de 3,11% do nosso PIB, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), movimentando mais de 200 bilhões de reais anualmente e empregando milhões de brasileiros. Cada real investido através de leis de incentivo, como a Lei Rouanet, retorna, em média, R$ 1,59 para a economia na forma de novos empregos, impostos e movimentação de uma cadeia produtiva que envolve mais de 60 setores, de acordo com estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pense no turismo de sua cidade ou estado: o que atrai o visitante senão a nossa cultura? As festas populares, o artesanato local, a música que ecoa nas ruas, a culinária que encanta paladares. Fomentar a cultura não é financiar o lazer de alguns; é investir na identidade que nos torna únicos e em um motor econômico poderoso que gera renda e oportunidades para todos.
A raiva e a desconfiança que hoje se voltam contra os programas de inclusão social nascem, muitas vezes, de um sentimento legítimo de sobrecarga, da sensação de que o Estado cobra muito e entrega pouco. E essa frustração é real. Mas o alvo desse descontentamento está equivocado.
O problema não está na mão estendida a quem precisa, mas em um sistema que historicamente privilegiou alguns em detrimento de outros. A "Lei de Terras" de 1850, por exemplo, ao proibir a aquisição de terras que não fosse pela compra, excluiu a população negra recém-liberta do acesso à propriedade, ao mesmo tempo em que o Estado incentivava e subsidiava a vinda de imigrantes europeus.
Não podemos apagar o passado. Mas podemos aprender com ele. Podemos honrar a luta e o trabalho de nossos antepassados, não esquecendo que eles também foram beneficiários de uma mão amiga. E, a partir dessa memória, podemos construir um presente mais justo e solidário.
Honrando o Passado para Construir o Futuro
Que possamos olhar para o próximo não como um adversário na luta por recursos, mas como um compatriota que, por diferentes circunstâncias históricas e sociais, não teve o mesmo ponto de partida. Que a prosperidade de alguns não nos impeça de ver a necessidade de muitos. E que a lembrança do acolhimento que nossos avós receberam nos inspire a construir um Brasil que acolha todos os seus filhos.
É com essa visão de um Brasil mais justo e criativo que trabalho, todos os dias, para que cada talento encontre seu caminho sustentável. Acredito que, ao fortalecer cada negócio, fortalecemos o todo.
Com respeito e esperança,
Para Aprofundar a Reflexão
Este artigo dialoga com as ideias de grandes pensadores brasileiros contemporâneos. Se você deseja aprofundar a compreensão sobre as raízes históricas e sociais do nosso presente, recomendo as seguintes leituras:
Jessé Souza - Especialmente o livro "A Elite do Atraso".
Ailton Krenak - Com sua obra "Ideias para Adiar o Fim do Mundo".
Sueli Carneiro - Com seus escritos sobre a dimensão racial da desigualdade no Brasil.